Cláudio Michelon e Conrado Hübner Mendes
"IMAGINEMOS um caso hipotético: um tribunal qualquer, num país qualquer, está prestes a decidir uma causa de grande impacto (qualquer que seja o impacto: para os cofres públicos ou privados, para a sensibilidade política dos cidadãos etc.).
Uma batalha legal, com conceituados juristas de ambos os lados. Aos vencedores, as recompensas financeiras pelo sucesso judicial. Estrategicamente, essa batalha se trava em dois campos paralelos. De um lado, as partes se enfrentam nas petições e nos pareceres apresentados aos órgãos decisórios. Tentam persuadir os juízes. De outro, manifestam-se nos jornais de grande circulação, em conferências e em artigos acadêmicos. Querem convencer um público mais amplo (e, por via indireta, também influenciar tais juízes).
Os atores são basicamente os mesmos. Mudam apenas a indumentária. No primeiro plano, são técnicos contratados para representar interesses. No segundo, são professores e intelectuais. Nada errado até aqui. Mas suponhamos também que os atores omitam sua condição de advogados da causa quando opinam sobre o tema como intelectuais públicos, que a roupa do jurista imparcial esconda o traje do advogado.
Há algum dilema ético nessa dupla atuação silenciosa? Alguma incompatibilidade moral ou profissional? Essa é uma das tentações da profissão do jurista. Na esfera pública, apresenta-se como cientista do direito. Suas opiniões gozam do prestígio que seus títulos lhe conferem. Sua tarefa como bom cientista, afinal, é produzir conhecimento, aproximar-se da verdade. Tem compromisso com a imparcialidade e o interesse público. Na esfera privada, ao contrário, tem um interesse predefinido que aceitou defender.
São duas funções fundamentais para o Estado de Direito. Todavia, se não exercidas de forma franca e transparente, geram um dano que nem sempre é fácil perceber. A fronteira entre prática profissional e academia, na área do direito, é nebulosa e deve ser vigiada. O vácuo regulatório dessa fronteira é perigoso. Quando juristas circulam disfarçadamente entre as duas esferas, praticam um tipo de patrimonialismo acadêmico: usam de veículos públicos a partir de suas credenciais universitárias sem revelar o interesse privado na causa.
A confusão entre as duas máscaras é conveniente para quem as veste, fonte de poder e de lucro, mas trágica para a democracia. Por que trágica? Porque induz a erro o cidadão e a opinião pública. Obviamente, a condição de advogado ou parecerista não os proíbe de participar da discussão sobre os casos em que atuam. Eles podem posicionar-se e argumentar legitimamente em qualquer controvérsia. O cidadão a quem essas opiniões se dirigem, no entanto, deve ser informado de que os interesses do jurista no desfecho do caso não são puramente acadêmicos.
Essa informação, aparentemente banal, permite ao leitor avaliar as ideias apresentadas em melhores condições e desconfiar de sua imparcialidade. Não significa presumir má-fé, mas simplesmente examinar os argumentos sem dar a eles nenhum trunfo especial pelo pedigree acadêmico que carregam.
Omitir os interesses não acadêmicos por trás dos casos não é, muitas vezes, mero esquecimento. A prática, com frequência, é deliberada e, como tal, um abuso da natureza camaleônica dessa profissão. É perniciosa não apenas para o debate público mas também para a própria autoridade intelectual do acadêmico.
Talvez não haja incompatibilidade no exercício das duas funções. A história traz exemplos de quem exerceu ambos os papéis com razoável competência. Não podemos só lamentar os casos em que, eventualmente, o advogado/acadêmico expressa opiniões públicas de forma ardilosa. Trata-se de um problema que exige regulação atenta da profissão de advogado, das faculdades de direito e mesmo uma autorregulação da imprensa.
Informar o público leitor sobre a concorrência de interesses do advogado/acadêmico deve ser um dever legal e institucional do advogado e do acadêmico. Mais ainda: os veículos de comunicação poderiam contribuir se exigissem de seus articulistas a abertura dessas informações.
Quanto vale a opinião do jurista? No mercado, somas astronômicas de dinheiro. O jurista dá a empresas e pessoas físicas um conforto sobre a legalidade de suas operações e é regiamente remunerado por isso. No debate público e acadêmico, cumpre um papel indispensável de azeitar a máquina do Estado de Direito, de iluminar caminhos para a interpretação e a aplicação das numerosas e conflitantes leis que organizam qualquer país moderno.
Quando os dois corpos do jurista se sobrepõem, ambos saem perdendo.
CLÁUDIO MICHELON, 38, é professor de filosofia do direito da Universidade de Edimburgo (Escócia).
CONRADO HÜBNER MENDES, 32, é professor licenciado da Escola de Direito da FGV-SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público."
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=551ASP016
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